sábado, 24 de setembro de 2016

A cor do (meu) amor.


Eu sempre quis morar nesse lugar de paredes brancas pra que nelas eu pudesse colocar quadros coloridos e por todo o espaço ter poucos móveis de cores fortes, alguns móbiles e plantas suspensas. Muitas almofadas. Tapetes fofinhos, abraços. Queria casa grande, com jardim ou quintal, e findei nesse quarto-e-sala. De estar sozinha, nunca quis. Mas pelo tempo de ser, foi preciso. E eu de ida com o tempo não tinha certeza de outra coisa além dessas paredes brancas. As coisas todas mudavam de vez em sempre. Então ela chegou. Da fila do café pra minha vida. Chegou e bagunçou aquela única certeza porque foi só vê-la, de sorriso, braços e janelas abertas, pra eu perceber que as cores significavam mais do que eu imaginava.

E bagunçou tudo o que viu pela frente. Meus vinis, meus livros e tropeçou no meu vasinho de orquídea. Abriu as cortinas, arregaçou as mangas e quebrou umas duas xícaras de chá que fazia, esquecia, esfriava e não queria mais. Pegou pra ela a primeira gaveta vazia que encontrou, encostou uma escova na minha e pendurou a calcinha no registro do chuveiro. Ventou. Furacão. Temporal. E acordava todo dia como se fosse brisa. Serena, meu café bem doce, meu travesseiro de colocar entre as pernas. Bagunçou minha cama, meus cabelos, minhas tintas. Virou rotina. A mais bonita. Doída pelo rótulo, é fato. Mas, ainda assim, a mais bonita.





Viciou minha retina nos dias de folga. Nos outros, dividiu as contas, a faxina e o cansaço. E foi embora. E voltou. Dividiu os sonhos, a receita de pavê e o criado-mudo. E foi embora. E voltou. Definiu, ali, em mim, a maior e mais deliciosa bagunça. Quando ficava, a gente deitava depois do trabalho, em silêncio, por alguns minutos. Eu sempre queria conversar e falaria até acordar a madrugada. Ela tinha pouca paciência. E foi aí que me fez acreditar entender um pouco mais sobre o amor quando, pra quebrar o silêncio, eu colocava um disco aleatório dos nossos preferidos pra tocar, e lá pela terceira faixa já estávamos cantando juntas. Os discos foram acabando e o amor permitiu repeti-los. O amor encanta a mesmice. Mas quando ia, o silêncio era outro e fazia muito barulho. A paz era a mais quieta de todas e algo assim não me apetece. Nem a ela. Eu dormia bem, muito, mas acordar sem bons dias em plenos olhos, quem quer depois de experimentá-los? Eu escolhia a disposição dos móveis, mas invariavelmente batia o dedinho do pé neles. O que eu acreditei saber sobre o amor, e soube, teve a mesma força que foi quebrando minhas mil e uma teorias sobre o que sabia das cores. E das dores. Tava tudo certo de cabeça pra baixo.

Era possível, e tão fácil, doer em flor sem nem pensar nos espinhos. Era tão difícil escolher a melhor cor pra moldura ainda que a parede fosse branca. E o branco era menos paz do que parecia. Era cômodo. Seria possível desejá-la ao mundo e ao mesmo tempo querer tê-la só pra mim? Eu queria explicar pra toda pessoa que cruzasse o meu caminho cada detalhe desse sentimento, cada razão. Mas ninguém entenderia. Quem quereria entender, pra começar? Quem poderia ceder, pra acabar? - Deixa eles! Pra que essa mania de explicar tudo?, ela diz sempre que está aqui. Mas ainda não chegou. E eles continuam questionando e, pior, duvidando, do amor.


No último final de semana ela apareceu. Molhada de uma chuva inesperada. Cansada, correndo, chorosa. Tomou um banho enquanto eu fiz um chá. Sugeri camomila, ela insistiu em morango, seu preferido estranho gosto. Sua cor depois da água quente. Seus olhos fundos de saudade. Escolheu o silêncio e a música. A primeira faixa passou lenta como um feriado no domingo. A segunda estava em outra língua, pausei. Perdi as contas. Ela já ria quando começou a cantar. "Deixo meu cinza de lado, admito teu vermelho...". Repeat. O disco inteiro, os dias todos desde que ela chegou. Passou a escolher esse disco sem que eu pedisse e sempre parava o que estivesse fazendo pra mudar a entonação nessa frase. Enquanto eu insistia em pintar o amor de céu, quando o próprio céu se borrava de outras cores todos os dias, ela me dizia, sem pressa e com cuidado, que não precisa deixar de ser clichê pra ser verdade. Como eu posso não querer que todo mundo sinta isso? Como posso aceitar que meio mundo não queira entender? Me questiono, sobressalto, fico eufórica. Ela sempre me fala pra respirar e contar até dez. Tão clichê... Terrivelmente piegas que sou, me rendi.

As cores são, nela, o meu estado de ser.
Finca tua bandeira e tuas lutas aqui. Vermelho, aquarela, cacho-de-uva, por-de-sol.
- Fica!?, pedi. - Que a melhor parte do dia continua sendo amanhe-ser teu colo...

~ repeat


 fotos: Cadu Vieira

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